Chá Dançante de Engenharia, os embalos dos domingos à noite

Antiga sede do Clube Duque da Caxias, no centro de Curitiba
Foto: Acervo do Clube

Bóris Bacana olhava em torno, atravessava o salão já tendo feito sua escolha, cumpria as cortesias de praxe e, em instantes, deslizava pela pista de dança com uma moça de fino trato. Ele, também, um cavalheiro de fino trato. A cena repetia-se quase todos os domingos. Boca da noite, a Sociedade (agora Clube) Duque de Caxias, no endereço que hoje pertence às lojas Pernambucanas (Dr. Muricy com José Loureiro, centro de Curitiba), que foi também da loja Muricy, transformava-se num concorrido point da juventude universitária curitibana. Principalmente acadêmicos de Engenharia. E tinha o sugestivo nome de Chá Dançante de Engenharia.

Eliezer Batista, o Bóris Bacana, em foto atual: sucesso na pista de dança
Foto: Facebook

Bóris Bacana era o apelido de um aluno destacado da Faculdade de Engenharia, que assumia porte aristocrático, o chapéu e a pose lembrando um galã russo. Não era outro senão o acadêmico Eliezer Batista, hoje com 93 anos e nome famoso no cenário nacional: fundador e presidente da poderosa Companhia Vale do Rio Doce, agora simplesmente Vale, ministro de Minas e Energia, empreendedor privado de porte, homem respeitado na República e além mar. Para os mais jovens, fica mais fácil dizer que é o pai do empresário Eike Batista, o ex mais rico do Brasil, ex-marido de Luma de Oliveira, a eterna destaque do Carnaval do Rio. Pois é, resumindo: Bóris Bacana, ou Eliezer Batista, é o ex-sogro de Luma. E, com seus gestos de cavalheiro de fino trato, balançou corações de belezas que hoje poderiam rivalizar com a ex-nora.

O arquiteto Elgson Ribeiro Gomes (dir) conheceu sua esposa Maria Lucinda em um dos Chás. Na foto de 2006, o casal com o engenheiro Luiz Cláudio Mehl
Foto: Enéas Gomez

O arquiteto Elgson Ribeiro Gomes (1922-2014), que conheceu sua mulher Maria Lucinda num daqueles bailes, lembrou certa vez, em entrevista ao Jornal do Instituto de Engenharia do Paraná (IEP), que Eliezer Batista “fazia ginástica numa sacada da rua 15 de Novembro, só de sunga, simulando ser um hindu, um monge. Seu ponto preferido era defronte à Casa Londres, também na 15, com seu terno de linho branco, impecável.  Intitulava-se ‘Sua Excelência, o barão Bóris Vasilevich’. Brincando, chamava os amigos de ‘moujiks’ (gente comum da rua). Em homenagem a ele, os colegas fundaram o PNB – Partido Nacional dos Bacanas, cujo presidente vitalício era o engenheiro Otto Hildebrando Doetzer”.

No livro “O Telhado lá de Casa – Vida e Obra de Arquiteto” (2015), organizado por seu filho, o arquiteto Péricles Varella Gomes, Elgson descreve Eliezer como “um estudante exótico, que falava sete línguas, de compleição atlética e braços ligeiramente curtos (…) Sentado em uma mesa no Chá Dançante de Engenharia, tirava do bolso uma piteira extensível e soltava fumaça no ombro de alguém na mesa vizinha”.

Em “Conversas com Eliezer”, obra de autoria de Luiz Cesar Faro, Carlos Pousa e Cláudio Fernandes, de 2005, Bóris Bacana revelou seu encantamento com a cultura russa. Quando jovem, estudava piano, mas seu professor, o alemão Oberon Dittert, elogiando sua voz de barítono, o encaminhou ao coro ortodoxo. Como as peças eram todas em russo, ele aprendeu o idioma: “Estudei sempre sozinho, inclusive a gramática, e aprendi a escrever cirílico”, relevou.

Ainda segundo Elgson Ribeiro Gomes “o chá dançante tornou-se famoso, pois foi uma ideia inteligente e feliz, tendo em vista que eram poucos os que podiam frequentar os clubes Curitibano, Country e Thalia, bastante em voga na época”.

UM CLUBE COM MUITA HISTÓRIA

O Clube Duque de Caxias foi fundado em 1890 por um grupo de imigrantes alemães, em prédio alugado próximo ao cemitério municipal São Francisco de Paula, no atual bairro São Francisco. Seu nome original era Teuto Brasilianischer Turn Verein zu Curityba (Clube de Ginástica Teuto-Brasileiro de Curitiba). Sua primeira sede própria foi construída em 1913, na rua Dr. Muricy, esquina da rua José Loureiro, centro da capital paranaense.

Em 1938, com a escalada do nazismo e às vésperas da Segunda Grande Guerra, mudou o nome para Sociedade de Cultura Física Jahn, em homenagem ao pai da ginástica, Friedrich Ludwig Jahn. Em 1944, em função da chamada Lei da Nacionalização, sancionada pela ditadura Vargas, em tempos de Estado Novo, passou a se chamar Sociedade de Cultura Física Duque de Caxias e em seguida teve a sede requisitada para ser hospital militar durante a guerra. Trinta anos depois, nova mudança de nome, agora para Clube Duque de Caxias. O velho e histórico prédio da Dr. Muricy foi vendido e mais tarde demolido. A entidade construiu sua nova sede no Bacacheri (r. Costa Rica, 1173), em área de 93 mil metros quadrados, que havia sido adquirida em 1933.

O Chá Dançante de Engenharia é ainda hoje um evento carinhosamente lembrado por quem curtiu os embalos dos domingos à noite na provinciana e fria Curitiba dos anos 1940, 1950 e 1960. Uma bela alternativa às comportadas sessões de cinema dos cines Ópera, Avenida, Palácio, Luz. E bem mais interessante.

Para se ter uma ideia de sua importância, basta citar que lá se apresentou, num frio domingo de julho, nos idos de 1960-1961, o irrequieto, exigente e sempre surpreendente cantor João Gilberto, como lembra o jornalista Aramis Millarch (1943-1992) em sua coluna Tablóide, no jornal “O Estado do Paraná”.

Waldir Tavares: frequentador das domingueiras
Foto: Revista do Crea-PR

Orquestras famosas, como a de Xavier Cugat e a de Ray Coniff também animaram os bailes. Cugat (Francesc d’Asís Xavier Cugat Mingall de Bru i Deulofe), nascido em Barcelona, Espanha, mas criado em Havana, Cuba,  foi um dos pioneiros na popularização da música latina nos Estados Unidos; era chamado o Rei da Rumba, como informa a Wikipedia. Além do Chá com Xavier Cugat, em seu endereço tradicional, em fins de 1949, o Diretório Acadêmico alugou o cine Ópera, na avenida Luiz Xavier, para uma apresentação da orquestra, como lembra o engenheiro Waldir Pedro Xavier Tavares, conselheiro do IEP, que foi tesoureiro do Diretório Acadêmico (o presidente era Diamantino Conrado de Campos) e frequentador das domingueiras da Duque. Ali, conheceu sua futura esposa, Zuleika.

Em entrevista ao Jornal do IEP, em 2003, o engenheiro Diamantino Conrado de Campos (1924-2010), que foi o pioneiro dos cursinhos preparatórios para o vestibular em Curitiba, lembrou dos acordes da Orquestra de Xavier Cugat, que também animou o Baile da Safira (referência à pedra-símbolo do anel de formatura da Engenharia), na Sociedade Thalia. Quem também cita a presença de Xavier Cugat, “em noites memoráveis”, é o arquiteto Lubomir Ficinski Dunin (1929-2017), que presidiu o Ippuc (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba) e foi secretário estadual de Desenvolvimento Urbano do Paraná.

A orquestra de Ray Conniff teria se apresentado no Chá no início dos anos 1960, quando o maestro veio pela primeira vez ao Brasil para participar de um festival internacional da Canção.

CHÁ COM BOLACHAS E GASOSA CINI

O nome Chá de Engenharia, ainda segundo o depoimento de Waldir Tavares, surgiu porque, no começo, nos bailes, servia-se chá quente com bolachas. O chá era fornecido por Agostinho Ermelino de Leão Filho, cuja família era dona de um engenho de erva-mate – o Mate Leão – em Curitiba. “Os Chás, nos primeiros tempos, eram realizados aos sábados. Não havia bebida alcoólica e, além do mate com bolachas, eram servidos refrigerantes, principalmente gasosa Cini; Coca-Cola só em fins de 1946, início de 1947. Mais tarde permitiu-se cerveja. E cuba-libre (rum com Coca-Cola). Apenas os rapazes pagavam entrada. As moças eram convidadas”, relembra.

Criado pelo Diretório Acadêmico de Engenharia do Paraná (Daep), no início dos 1940, o Chá Dançante de Engenharia tinha o “intuito de proporcionar diversões aos seus associados e respectivas famílias”, conforme relata em sua edição de novembro-dezembro de 1943, a Revista Técnica criada pela entidade: “Contando em todos eles com a colaboração da conhecida Orquestra Estudantes, notáveis foram os êxitos alcançados, sob todos os pontos de vista. Realizados, em sua maioria, com caráter beneficente, nada deixaram a desejar todas as festividades organizadas pela entidade acadêmica representante dos alunos de Engenharia do Paraná”.

Abílio Ribeiro: mentor do Chá Dançante
Foto: site Furacao.com

O presidente do Diretório era o acadêmico Agostinho Ermelino de Leão Filho; o diretor social, Júlio Cesar de Souza Araújo; e o diretor esportivo, Abílio Ribeiro, que, mais tarde teria destacada atuação na vida pública paranaense. Abílio, que também foi diretor social, teria sido o mentor dos chás dançantes, segundo o jornalista Aramis Millarch, (Tablóide de 12/4/1989), versão confirmada por antigos frequentadores, entre eles Elgson Ribeiro Gomes e Waldir Tavares.

Outro jornal, o Diário da Tarde de 7/2/1944, relata: “Os saraus do Diretório Acadêmico de Engenharia do Paraná, promovidos sempre com finalidade humanitária, constituem já parte da tradição social curitibana. E por isso, cada sarau, cada Chá Dançante, cada partida organizada pelo diretório em questão reveste-se de amplo sucesso, conseguindo monopolizar as atrações da alta sociedade de nossa Capital”.

E segue: “Desse sucesso, mercê da orientação altamente humanitária, resultam auxílios inestimáveis para os desfavorecidos da fortuna, cooperando com as associações de assistência social e derramando bênçãos sobre tantos infelizes. E que eles souberam transformar as flores soberbas da alegria nos fundos sublimes da caridade cristã”.

Boa parte da renda dos Chás ia para instituições como o Asilo São Luiz, Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz, Hospital São Vicente de Paulo, Sociedade de Socorro aos Necessitados, Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, Associação de Assistência à Criança do Paraná (dirigida pela sra. Anita Ribas, primeira dama do estado), Educandário Curitiba.

No relatório de um evento, irmã Olímpia, diretora do Asilo São Luiz, agradece o envio de “20 peças de fazenda”; em outra ocasião, de “mercadorias no valor de 1.108 cruzeiros”. Irmã Umbelina, superiora do Nossa Senhora da Luz diz em carta ao presidente: “Sensibilizou-nos sobretudo o interesse demonstrado pelo aristocrático grêmio universitário, tão dignamente dirigido por V.S., para com os enfermos deste estabelecimento”.

A coluna “Motivos da Cidade”, assinada por Heitor Stockler, (Diário da Tarde, 8/5/1944) cita: “Mas o que tem de nobre no doce enlevo das reuniões dansantes, há um ano instituídas pelo árdego acadêmico Agostinho Ermelino de Leão Filho, e que reúne, na mais cordial e distinta afinidade social, a alta sociedade curitibana, é que o saldo financeiro é distribuído, indistintamente, às nossas associações de caridade e de assistência que, nesse alvitre de solidariedade humana, têm motivos para benção e aplausos ao vitorioso grêmio”.

Do mesmo jornal: “‘Animados por explêndida orquestra, cintilante pelo colorido vivaz das lindas ‘toilettes’, as dansas prolongaram-se até ao anoitecer, ali reinando um ambiente acolhedor, de alta distinção, que constituiu a nota ‘chic’ daquele domingo de maio” (…) ”Reúne-se a mocidade estudiosa” (…) “Mesas à venda na Bombonière Manon, na rua 15 de Novembro”.

Em outra edição: “Figuras mais destacadas de nosso mundo elegante, que, com suas ‘toilettes’ vistosas e seus trajes impecáveis, emprestaram à festa um brilhantismo sem igual, constituindo as mesmas mais um marco glorioso da vida elegante curitibana”.

A BIG-BAND DO GENÉSIO

No correr de 1949, o Chá Dançante mudou algumas vezes de lugar: houve uma edição no Clube Curitibano (cuja sede era na rua 15 de Novembro), “com o novo cantor e ator cinematográfico Tito Guizar” e o “cantor de sucesso Ivon Curi”, e outro na Sociedade Thalia, com a cantora La Mexicanita. Paralelamente, o diretório estudantil realizava eventos como o Baile do Calouro (idealizado por Jobar Cassou, mais tarde vereador em Curitiba) e “um animadíssimo concurso de elegância, encerrado com o baile ‘Champagna de Coroação’, com renda revertida para a Campanha de Alfabetização de Adultos”.

No final do mesmo ano, o diretor social Ruy Ferreira estuda a possibilidade de maior incentivo aos Chás Dançantes, esperando para 1950, “magníficos bailes à sociedade da Cidade Sorriso e aos acadêmicos em geral”. E isso se concretizou: o Departamento Social do Diretório fez acordo com o Clube Curitibano para a apresentação de “grandes cartazes internacionais e nacionais do cinema e do rádio”. Na sequência, apresentaram-se: “Carlos Ramirez, astro do cinema americano; Nilo Sérgio, cantor de rádio nacional; Cuquita Carballo, artista do cinema nacional”. Foi um dos eventos mais concorridos. Em outro, também em 1950, Terezinha Correia Lima, secretária da Escola de Engenharia, foi eleita Miss Engenharia. E quando havia grandes atrações, o ingresso era mais caro, lembra o engenheiro Waldir Tavares.

Mas se nomes artísticos de expressão da época eram um convite aos embalos das noites de domingo (no começo, o encontro começava às cinco da tarde e terminava às nove da noite; anos mais tarde, ia das nove à meia-noite), a marca, o sinônimo de Chá Dançante, foi a Orquestra do Genésio. Em sua coluna de 12/4/1989, lembra Aramis Millarch: “Difícil encontrar um curitibano que já passou dos 40 anos que não ligue o nome de Genésio com o Chá Dançante de Engenharia (…), familiar e ingênua reunião domingueira…”

Genésio Ramalho, natural de Ponta Grossa, filho e irmão de músicos, despertou para os acordes desde a infância; quando serviu o Exército, em Porto União (PR), tocou na banda militar. Estudou saxofone mas acabou baterista. “Um estudo sobre a música dos anos 1930/1940 mostrará a importância da orquestra de Genésio, pela qual passaram mais de 150 diferentes instrumentistas e crooners, muitos dos quais se projetaram profissionalmente; outros, estudantes, encerraram suas carreiras após terem se formado pela Universidade do Paraná (…) No Chá Dançante, imitando saudavelmente as big-bands americanas (Tommy e Jimmy Dorsey, Art Shaw, Glenn Miller, Count Basie), embalava muitos romances”, escreveu Millarch.

A NOITE DE JOÃO GILBERTO

Aquela história sobre a presença de João Gilberto no Chá aconteceu mais ou menos assim, ainda segundo o registro da coluna Tablóide: havia em Curitiba, naquela época um radialista chamado Paulo César, apresentador de programas de auditório de sucesso na rádio Guairacá, na rua Barão do Rio Branco. Ele levava artistas ao seu programa e, depois, ao Chá Dançante, um acordo que teria com o Diretório Acadêmico para diminuir custos. “Pois foi para uma dessas programações que Paulo César trouxe a Curitiba – pela primeira e única vez – o então jovem João Gilberto. A apresentação de João no auditório da Guairacá não foi nenhum sucesso. Afinal, para um público simples, acostumado a aplaudir outro tipo de intérpretes, a voz fina e diferente, a batida nova de João Gilberto ao violão, não traziam a empatia imediata”. Mas na Duque de Caxias, “um público surpreendentemente atento o aplaudiu bastante”. (Tablóide, O Estado do Paraná, 29/6/1986).

Segundo Millarch escreveu em abril de 1989, “a orquestra de Genésio acabou há 28 anos, junto com o Chá Dançante”. Quase três décadas depois, aos 75 anos, Genésio reeditou passageiramente sua “histórica banda de metais”, contratado pelo hotel Bourbon, de Curitiba, para animar os fins de semana da boate Four Seasons, mas com apenas oito integrantes.

Entre 1974 e 1976, há registros no boletim informativo da entidade, que o Instituto de Engenharia do Paraná, através de seu Departamento Universitário, realizou, na gestão do professor Luiz Carlos Pereira Tourinho, pelo menos três edições anuais de um evento chamado Chá de Engenharia, todos no Clube Concórdia e destinado aos associados. Animaram os bailes o Samjazz Quintet, conjunto já famoso na época, Os Carbonos e Arnaldo Savy Trio, respectivamente.

Mas os tempos eram outros. Faltava o charme das domingueiras de outrora, ainda vivas na memória de tanta gente.

  • Texto publicado originalmente no livro “Instituto de Engenharia do Paraná – Um pioneiro a caminho do centenário – volume 2”, de autoria do jornalista Júlio Zaruch. 

 

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