A ilha encantada do poeta

A casa-museu, na costa selvagem de Isla Negra/fotos: JZ

O poeta jaz debruçado sobre as águas muito azuis do Pacífico. É uma sepultura rasa, coberta de flores e cercada de pedras redondas. Pablo Neruda está encantado num pequeno lugar chamado Isla Negra, situado na costa central do Chile, ao sul de Valparaíso. Ao seu lado, repousa a companheira Matilde Urriarte, terceira esposa, falecida 12 anos depois.

O lugar é visita obrigatória para quem vai ao Chile. E a casa virou museu, hoje considerado Patrimônio Nacional. Neruda morreu ali, em 23 de setembro de 1973, entristecido com a morte, 12 dias antes, do grande amigo Salvador Allende, o presidente derrubado pelos tanques do general Augusto Pinochet, que mergulharia o país numa sombria ditadura pelos próximos 17 anos. O poeta tinha câncer e a notícia o debilitou ainda mais, o coração não suportou.

A sepultura de Neruda, debruçada sobre o Pacífico

Isla Negra – no dizer dos nativos “nem ilha nem negra” – era um dos três endereços de Neruda, cujo nome de batismo era Neftali Ricardo Reyes Basoalto. Adotou o sobrenome Neruda, que viu numa revista, sem saber que pertencia a um escritor checo. A ele somou Pablo e assim o pseudônimo servia para ocultar do severo pai José Del Carmen, os seus escritos.

As duas outras casas foram La Chascona (A descabelada), no bairro de Bela Vista, perto do centro de Santiago, e La Sebastiana, em Valparaíso.

Em Isla Negra, o quarto de Neruda, preservado, era um verdadeiro camarote com vista privilegiada para o mar. Nas cabeceiras da cama, de um lado a luneta do marujo (o poeta gostava de se imaginar o capitão da casa-barco) e, do outro, um carneiro de pano, lembrando um brinquedo da infância.

Em várias salas, uma coleção de carrancas de proa de embarcações, que batizava com os nomes das mulheres de sua vida, entre elas Maria Antonieta Hagenaar (Maruca), Delia del Carril e Matilde.

Outras coleções povoam a casa-museu de Isla Negra: de borboletas, caramujos, globos terrestres, pequenos barcos a vela, barcos em garrafas, instrumentos musicais de corda e garrafões coloridos, um deles com o formato de um santo Antônio.

De uma porta de escotilha de um barco, presente que as ondas do mar deixaram na praia, Neruda fez uma mesa de trabalho. O terno que vestiu para receber o Nobel de Literatura está lá, num manequim, ao lado de chapéus, bonés e ponchos que o agasalharam.

Outra dependência interessante é a Sala do Cavalo, com uma réplica do animal em tamanho natural e crina de verdade.

Em seu livro “Confesso que Vivi”, Neruda fala da casa: Encontrei uma casa de pedra defronte do mar num lugar desconhecido para todo mundo, chamado Isla Negra. Don Eladio Sobrino, o proprietário, um velho socialista espanhol, capitão de navio, estava construindo-a para sua família, mas quis vender. Como compraria?”

Sua editora não quis adiantar recursos de seu livro “Canto Geral”, mas outros amigos editores o ajudaram e o negócio foi fechado em 1939.

“A costa selvagem de Isla Negra, com o tumultuoso movimento oceânico, permitia que eu me entregasse com paixão à empresa do meu novo canto”.

Dizem que, todos os dias, um pequeno cão vira-lata posta-se de costas para a sepultura de Neruda e fica longo tempo olhando o mar.

Seria o poeta, reencarnado, em busca de inspiração?

GARRAFAS E CARRANCAS

“Edifiquei minha casa também como um brinquedo e brinco nela de manhã à noite”.

“Tenho um barco veleiro dentro de uma garrafa. Para dizer a verdade, tenho mais de um. É uma verdadeira frota, com seus nomes escritos, seus mastros, suas velas, suas proas e sua âncoras”.

“Meus brinquedos maiores são as carrancas de proa (…) São figuras com busto, estátuas marítimas, efígies do oceano perdido (…) Tenho carrancas e mais carrancas. A menor e mais deliciosa, que muitas vezes Salvador Allende tentou me arrebatar, chama-se Maria Celeste. Pertenceu a um navio francês, de tamanho menor, e provavelmente não navegou senão nas águas do Sena”.

(Do capítulo “Garrafas e Carrancas” do livro “Confesso que Vivi”).

 

(Publicado originalmente na revista Panorama do Turismo – março de 2006)

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